O Discurso da Romantização da Pobreza

Estava eu outro dia passando os stories do Instagram, quando me deparei com o texto de Murillo Nonato no story de um amigo meu, e a narrativa ali me prendeu, porque me fez pensar em nosso assunto do mês, sobre os numeros Karmicos.

Refleti sobre o tamanho da responsabilidade daqueles que governam e organizam a estrutura social. Em geral essas pessoa não só formam opiniões, como criam verdades que são incutidos no subconsciente coletivo, sem que a grande parte de nós sequer pense em questionar, afinal são verdades! Que acabam se tornando pétreas com o passar dos séculos.

E o discurso da romantização da pobreza, do qual nos fala nosso autor, é por demais sedutor. As elites traem o povo a partir do momento em se aproveitam de sua posição de poder, e aqui nem estou falando do poder de mando, mas sim do poder de manipular mentalidades, para construir uma realidade onde alguns sujeitos se convencem que o mundo é o que é, porque é, e que de nada vale lutar contra isso, só sendo possível se adaptar dentro desta estrutura.

E aqui se adaptam todas as camadas sociais, mantendo o status quo, isto é, a ordem social como é, e que beneficia um percentual super baixo da população planetária. Algumas pessoas nascem em posição de manter ou de alterar as estruturas mentais, mas é muito cômodo criar ou manter discursos que inviabilizem a mudança.

Embora não pareça, a intelectualidade está a serviço desse sistema que mantém tudo como está, e as mentes que trazem novas ideias são extremamente reprimidas, até que seu pensamento, pela ação natural do número 5, venha a se estabelecer, e ainda assim se misturando as formas de pensar anteriores, num processo de depuração que pode levar séculos, daí dizermos, os teóricos da história, que a história das mentalidades se processa na longa duração. Uma forma se ser dentro de uma estrutura social pode facilmente levar mil anos para ser alterada. E aqui é para intelectuais e pensadores que quero chamar atenção.

Quem historicamente teve acesso à educação de qualidade foram os filhos da elite, e foram eles que decidiram como a sociedade deve pensar: quem está no topo da pirâmide, quem deve obedecer, qual o papel de homens e mulheres, como devem pensar, sentir e se comportar, como cada indivíduo deve ser e sentir dentro de seu lugar na cadeia social, do lavrador ao rei, todos tem um papel fixo que não deve ser questionado.

E todos acabam por concordar, relativizar e mesmo romantizar a vida a partir das lentes opressores dos criadores de pensamento. Quantos filósofos não lemos que não sabiam pensar fora da caixa? Mas que sabiam sim pensar argumentos lógicos para apoiar o pensamento que lhe dava o privilégio de ser um ‘livre pensador’ dentro de sua sociedade.

No texto que lhes trouxe, extraído da conta de Instagram do Nonato @avenca.i, vemos o exemplo de um intelectual, pertencente à classe média, que está totalmente convencido das verdades romanceadas sobre a vida dos pobres viventes às margens do mar da Ribeira, em Salvador. Aliás, a classe média não é elite, mas é um instrumento eficaz desta para a manutenção das formas sociais vigentes. É uma classe que acredita ser rica, porque saiu da miséria total, e ficou um pouco mais distante, porém não livre, da fome total que pode acometer os viventes em épocas de crise econômica ou humanitária. Ela sempre esteve nesse limiar, e tal como os capitães do mato da época da escravidão, preferem se identificar com a classe dominante, para assim manter a ilusão de que são livres.

No texto podemos perceber a astúcia, perfídia e traição de quem convence os subalternos de que este é o seu lugar. Vemos também os que caem na tentação de se deixar convencer que a forma das coisas são como são por uma espécie de consenso, e que cada um faz o que tem que fazer de forma satisfatória.

É conveniente reforçar o discurso de que todos vivem felizes, para que não seja preciso alterar as estruturas e distribuir melhor os recursos entre todos. O mundo não é o que é porque sim, ele é o fruto do pensamento da coletividade. E aqueles que tem uma mente mais aguçada conseguem dominar a mente daqueles que são mais susceptíveis. No Caibalion, ao lermos sobre a sétima lei, do gênero, encontramos uma referência a isto, a mente mais poderosa que consegue concretizar a ação através das mentes mais susceptíveis, que não sabem para onde enviar seu poder criativo. Manipulações, mentiras, traições, jogos de poder… de quem estamos falando caros mestres? Deixo-os agora com o texto Romantização da Pobreza de Murillo Nonato.

“Me encontrava, certo dia, em um restaurante que fica de frente para o mar em uma comunidade localizada próximo a Ribeira em Salvador. A cozinha do restaurante é um quadrado minúsculo que não cabe uma mesa sequer. As mesas e as cadeiras do estabelecimento são de plástico, daquelas mesmo de boteco, e ficam debaixo de um toldo desgastado e rasgado do outro lado da rua. Fui convidado para comer neste local por um homem com quem me relacionei por um breve período. Ele estava cursando sua quarta graduação em uma federal e era também funcionário do alto escalão da Receita Federal. “Achei que ia gostar de almoçar na comunidade já que é antropólogo”, ele disse. Eu ri de canto de boca.

Assim que chegamos, demonstrou que possui intimidade com o local e com as pessoas que ali moram e trabalham. Logo explicou que havia defendido uma dissertação na área de biologia tratando dos aspectos ambientais e socioeconômicos do lugar. Inteligentíssimo, me ensinou sobre as modificações e resistências daquele espaço ao longo das décadas frente a exploração dos recursos naturais e humanos pela ganância dos empresários sedentos por lucro. Em dado momento, ele disse:

— Mas é bonito, né?

— O mar? – perguntei.

— Não, a forma como essas pessoas vivem felizes apesar dos baixos recursos. É um certo privilégio poder morar de frente para o mar, eles vivem a natureza de forma que nós que somos mais urbanizados não vivemos. É uma vida mais leve, mais comunitária e em contato com a natureza. Sei lá, eu sinto que eles tem uma sorte que nós não temos. Valorizam as coisas certas. Sabem viver a vida melhor.

Fiquei em silêncio. Ele aguardou a resposta também em silêncio. Desviei o olhar para o mar, mas ele queria uma resposta. O homi (sic), não o mar. Ele perguntou se eu não concordava com seu ponto de vista. Eu disse que não, e expliquei que a romantização da pobreza consiste em cultivar a imagem de que os pobres possuem uma aura de pureza, elevação moral e comportamento idealizado associado à humildade, e tudo isso é uma invenção da classe média para manter os corpos pobres dóceis – de modo que não se rebelem – e para nos impedir de fazer reflexões realmente críticas sobre a pobreza.

Expliquei que os pobres são pessoas reais, que sentem as carências e dificuldades de viver no mundo capitalista e sua acachapante ganância e desejo de lucro via manutenção da concentração de renda, miséria e exploração do trabalho. Não é bonito viver de frente o mar enquanto se passa fome, enquanto você está carente de acesso à educação e saúde. A realidade é que eles vivem desamparados pelo estado. Não é porque acham bonito, mas porque não há escolha.

Refletindo um pouco mais agora sobre essa história, penso que é necessário salientar que há agência dentro dessa estrutura por parte das pessoas pobres. Eles resistem, recriam essas realidades para as tornar menos opressoras ou mais toleráveis, mas dentro de um quadro regulado de opções, instrumentos e possibilidades de ação – o que foge do esperado ou permitido é fortemente controlado pelo mercado e pelo Estado.

Essa não é uma real forma de autonomia ou liberdade. Esses movimentos são constritos dentro de um quadro regulado, repito. Tendo essa realidade em mente, entendo que a romantização obscurece as verdadeiras causas da pobreza, como a concentração de riqueza, a falta de políticas públicas eficazes e a exploração econômica. E tem por efeito também aplacar a culpa da classe média de esquerda sobre a diferença de classes construindo discursos que não são radicalmente suficientes para mobilizarem ações que potencialmente poderiam alterar esse sistema.

Bebericamos cerveja, comemos um pouco, conversamos amenidades, mas do outro lado da mesa o meu companheiro não digeria bem a resposta. Assim, ao finalizarmos a refeição, enquanto pagávamos as contas, conversava com a dona do restaurante, que também assumia as funções de cozinheira e garçonete. Ele comentou com ela, esperando concordância, como é

bonito e um privilégio morar na frente do mar, junto a uma comunidade de pessoas que se conhecem e se ajudam, fazendo referência a uma hipotética harmonia entre os moradores.

A senhora, já idosa e corcunda, que o chamava de doutor, respondeu que aquele mar não era para ela, mas sim para os clientes. Ela afirmou que o restaurante fecha uma vez ao ano, dia 1 de janeiro, exceto esse dia trabalhava de domingo a domingo. Desde que era criança, afirmou ela, “ficava com a barriga esquentando no fogão”. Lamentou ainda, não manter uma boa relação com sua irmã e com os demais moradores e comerciantes do bairro, pois há uma disputa que se estende há décadas pelo uso daquele espaço comercial.

Por fim, ela disse que se pudesse fecharia aquele restaurante e o abandonaria sem olhar para trás, mas acredita que terá de trabalhar até o fim da sua vida, pois não foi orientada a contribuir para o INSS e hoje não sabe como fará para se aposentar, seus processos tramitam na justiça. No caminho de retorno para casa ele fez um silêncio constrangedor.”

Deixemos de poetizar as vidas precárias sem complexificar suas narrativas. As vidas dos sujeitos à margem do Estado e da sociedade não são reduzidas a tristezas, mas é contraproducente hiper dimensionarmos as potências das resistências em nosso desejo de mostrar narrativas outras, possibilidades outras de existência, como pequenos Davis enfrentando Golias, sem nos atentarmos para as complexidades desses modos de existência e como são limitantes para quem as vive.

Texto do Curso de Mestrado em Numerologia da Alma, Publicado por Deuzu Galvao.

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